terça-feira, 14 de novembro de 2000

TXOPAI E ITOHÃ - MITO FUNDADOR PATAXÓ

O povo pataxó habita o extremo sul do estado da Bahia e também uma reserva indígena no noroeste do estado de Minas Gerais. Estão hoje, embora muito reduzidos, no mesmo território que ocuparam historicamente. No sul da Bahia, vamos encontrar, atualmente, dezoito aldeias com aproximadamente dez mil indivíduos. Pertencem ao tronco linguístico macro-jê e continuam lutando pela posse de seu território tradicional, como nos mostra a retomada do Monte Pascoal em agosto de 1999, largamente noticiada pela imprensa. Salvino dos Santos Brás, o escritor do mito que analisamos a seguir e uma das grandes lideranças do povo pataxó, é professor e mora com sua família na fazenda Guarani, reserva indígena em Minas Gerais, embora tenha nascido em Barra Velha (BA), aldeia-mãe de todo o povo.
O objetivo nosso, com esse artigo, é dar vez e voz aos pataxó para dizerem quem são, através de suas falas registradas por nós em entrevistas. À luz do mito escrito por Salvino, tecemos ainda comentários numa linha mais analítica. Para fazê-lo, usamos re-flexões de alguns filósofos pré-socráticos e de Gaston Bachelard, quando este trata das quatro forças que movem o universo: terra, água, fogo e ar.
Outros autores, clássicos no tratamento do tema, também são lembrados.
Antigamente, na terra, só existiam bichos e passarinhos, ma-caco, caititu, veado, tamanduá, anta, onça, capivara, cutia, paca, tatu, sariguê, teiú... cachichó, cágado, quati, mutum, tururim. Jacu, papagaio, aracuã, macuco, gavião, mãe-da-lua e muitos outros passarinhos.
Naquele tempo, tudo era alegria. Os bichos e passarinhos viviam numa grande união. Cada raça de bicho e passarinho era diferente, tinha seu próprio jeito de viver a vida.
Um dia, no azul do céu, formou-se uma grande nuvem branca, que logo se transformou em chuva e caiu sobre a terra. A chuva estava terminando e o último pingo de água que caiu se transformou em um índio.
O índio pisou na terra, começou a olhar as florestas, os pássaros que passavam voando, a água que caminhava com serenidade, os animais que andavam livremente e ficou fascinado com a beleza que estava vendo ao seu redor.
Ele trouxe consigo muitas sabedorias sobre a terra. Conhecia a época boa de plantar, de pescar, de caçar e as ervas boas para fazer remédios e seus rituais. Depois de sua chegada na terra, passou a caçar, plantar, pescar e cuidar da natureza.
A vida do índio era muito divertida e saudável. Ele adorava olhar o entardecer, as noites de lua e o amanhecer. Durante o dia, o sol iluminava seu caminho e aquecia seu corpo. Durante a noite, a lua e as estrelas iluminavam e faziam suas noites mais alegres e bonitas. Quando era à tardinha, apanhava lenha, acendia uma fogueira e ficava ali olhando o céu todo estrelado. Pela madrugada, acordava e ficava esperando clarear para receber o novo dia que estava chegando. Quando o sol apontava no céu, o índio  começava o seu trabalho e assim ia levando sua vida, trabalhando e aprendendo todos os segredos da terra.
Um dia, o índio estava fazendo ritual. Enxergou uma grande chuva. Cada pingo de chuva ia se transformar em índio.
No dia marcado, a chuva caiu. Depois que a chuva parou de cair, os índios estavam por todos os lados.
O índio reuniu os outros e falou:
- Olha parentes, eu cheguei aqui muito antes de vocês, mas agora tenho que partir.
Os índios perguntaram:
- Pra onde você vai?
O índio respondeu:
- Eu tenho que ir morar lá em cima no ITOHÃ, porque tenho que proteger vocês.
Os índios ficaram um pouco tristes, mas depois concordaram.
- Tá bom, parente, pode seguir sua viagem, mas não se esqueça do nosso povo.
Depois que o índio ensinou todas as sabedorias e segredos, falou:
- O meu nome é TXOPAI.
De repente o índio se despediu dando um salto, e foi subindo... subindo... até que desapareceu no azul do céu, e foi morar lá em cima no ITOHÃ.
Daquele dia em diante, os índios começaram sua caminhada aqui na terra, trabalhando, caçando, pescando, fazendo festas e assim surgiu a nação pataxó. Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras, indo embora para o rio e o mar
Este é o belo texto escrito do mito pataxó Txopai Itohã, narrado por Apinhaera Pataxó
(Sijanete dos Santos Brás) e escrito por Kanátio (Salvino dos Santos Brás), texto im-presso e divulgado em livro.
Aqui apresento um modo de olhar, de interpretar este mito fundador do povo pataxó, habitante do extremo sul da Bahia, região do descobrimento, onde viviam os tupi e os jê. Vou utilizar, além do texto do mito, uma entrevista e um diálogo informal que mantive com Salvino, em julho de 1998. Ele, então, fala de si e de seu trabalho como escritor do mito, de suas ideias em relação à natureza, da representação política, da arte, dos destinos do ser.
Salvino é herdeiro de uma tradição dos povos nativos das Américas, que se manifesta sempre e de diferentes modos, através dos tempos.
Nesta passagem para a escrita, percebemos formas originais de reelaboração de as-pectos de uma cultura de base predominantemente oral.
O escritor
“Meu nome como vocês sabem é Salvino dos Santos Brás... o nome de luta é Kanátyo Pataxó e eu sou uma das lideranças da aldeia Guarani e também sou professor da escola Bacumuruxá do Retirinho.
Trabalho na escola... no artesanato... algumas vezes faço uma rocinha de feijão...
São seis professores aqui na Fazenda Guarani. Três aqui no Retirinho e três na sede. Os meninos do Imbiruçu vem pra cá... do Córrego do Engenho...
Eu nasci em Barra Velha e de lá eu sempre queria conhecer mais índios, nações indígenas... já tinha parente meu aqui morando e eu queria conhecer... lá a terra foi ficando muito diminuída... quando o IBDF tomou o Parque Nacional do Monte Pascoal... então não dava pra todo mundo... Então surgiu a ideia de eu vir pra cá com a minha família... meus pais... meu tio... aí a gente veio... então a gente começou a lutar... a terra ainda não estava demarcada... nós ajudamos a demarcar... lutamos muito pela demarcação. Hoje eu já me considero filho daqui. Esse lugar... a cultura do povo pataxó tá muito ligada à água... à mata né?
Então... mesmo que a gente não tenha um rio pra gente pescar... um mar pra gente mariscar...aqui eu me sinto muito bem... ainda tem mata... tem caça... mas a gente não destrói muito a caça porque a gente quer ver elas cada vez produzir mais... pras crianças conhecer. Mesmo quando a gente bota um mundéu na mata... e traz um tamanduá... um tatu...às vezes uma paca... tem jacu... soin... nessa região a mata foi muito destruída!
Os nossos espíritos também moram aí... na natureza e me faz sentir bem... eu vejo que os meus ancestrais... os espíritos dos velhos de 500 anos atrás estão aqui presentes.... isso me faz sentir bem.”
Ao falar de si, Salvino representa um pensamento que reflete a cultura tradicional. Hoje nós vivemos, em toda a América Latina, um processo de formação de intelectuais indígenas, líderes de suas comunidades. Eles têm maior ou menor escolaridade ou formação letrada e reelaboram, através da escrita, a tradição oral que receberam de seus pais e avós. Nessa passagem da oralidade para a escrita, reinventam um passado. Vamos conhecer melhor o pensamento de Salvino.
“Olha... pra mim é onde me faz sentir ser pataxó. Eu saio daqui e vou pra aquela montanha ali... eu vejo uma plantinha e o espírito dela conversa comigo... ela tem algo... então eu vou desenhar aquela plantinha.
Cada coisa que a gente vê ... a gente pode criar algo e o índio é criativo. Tudo que ele vê ele cria... ele expressa o sentimento dele através do desenho... então ... eu acho que esse livro Txopai Itohã foi a minha própria natureza... nasceu dentro do mundo do meu povo... é uma coisa nata. Eu me considero uma pessoa que veio pra este mundo expressar a beleza do povo pataxó através da poesia. Quando eu vejo uma coisa que dá pra eu fazer aquilo... eu vou e faço... é o meu jeito de construir a história.
Esse mito pra mim é o princípio da vida do povo pataxó... por isso eu fiz esse livro... pra levar uma mensagem de quem é o povo pataxó ( ... ) as nossas raízes nos
fortalecendo... como a água que é fonte de vida.”
Txopai Itohã: mito fundador pataxó Salvino é o filósofo. Aqui ele fala com a voz do ser portador, de sujeito da história. Assim ele é feliz, todos podemos habitar o mundo feliz com a constante expansão do ser, o homem pode assumir o seu devir e participar da felicidade do mundo. Essa é a realidade do super-homem de que trata Nietzsche.
O discurso de Salvino transmite isso. Nesse trecho de nossa entrevista, lembramos dos pré-socráticos... “as nossas raízes nos fortalecendo... como a água que é fonte de vida...” olhar a natureza... celebrar a natureza... pisar na terra. Na relação do homem com o mundo natural, as primeiras imagens, as imagens princeps, pertencem à imagi-nação da matéria cósmica. Para Empédocles de Agrigento, o universo podia ser entendido como resultado de quatro raízes - água, ar, terra e fogo, as quais seriam quatro realidades verdadeiras, que conteriam em si toda a matéria, não havendo, no universo, nascimento ou morte, somente mistura e dissociação dos componentes da mistura. Salvino fala de dois mundos. O deles e o do “branco”. Vamos acompanhar:
“As minhas atividades...eu procuro fazer com bastante carinho...cada coisa... tudo é importante... se eu vou pra você é porque eu tenho que ir...preciso do feijão pra comer... do milho pra cozinhar...pra galinha comer... na escola eu tô mexendo com tudo
isso... o uso do território... tá mexendo com a cultura...ela é um caminho pra gente atravessar do outro lado... é como um rio que tá entre o mundo do branco e o mundo nosso. A nossa escola prepara nós pra chegar lá do outro lado.”
É o sujeito político. Quando lhe perguntei sobre sua participação como representante no MEC para assuntos relativos à escola indígena, sua resposta foi a do homem político:
“Sim. Faço parte dessa coordenação. A gente se reúne e discute. É um meio pra gente aprender a política... esse jeito de trabalhar do branco que a gente não tem conhecimento. A gente vai aprendendo e quando a gente já tiver formado mesmo a gente sabe tocar o nosso barco pra frente... do nosso jeito ...”
Ao ser indagado sobre o caráter de sua formação, falou como o líder que é e deu uma resposta poética:
“A mais importante... foi a formação que eu tive dentro de casa... dentro da casa do meu povo! As primeiras letras eu fiz lá na escolinha da aldeia né?... eu fui pra escolinha... da aldeia...lá...”
Reflexões sobre o mito
No início do mito, temos a apresentação do espaço e do tempo primordiais. Havia mui-tos bichos, de raças diferentes. Um dia choveu e da chuva nasceu um ser humano chamado índio.
No tempo da origem, não há separação. O homem está integrado ao cosmo. O homem pertence à physis, que para os gregos significava “fonte originária”, “processo de surgimento e desenvolvimento”. Para Tales de Mileto, fundador da escola pré-socrática, o princípio primordial era a água, a gênese estaria na água, que poderia tornar-se sólida, evaporar-se etc., assumindo outros estados da matéria. Para Anaximandro, também da escola de Mileto, o universo teria resultado de modificações ocorridas num princípio originário ou arché, que seria o ápeiron, o infinito ou o ilimitado.
Anaxímenes, o último representante da escola milesiana, dirá que o universo é resultado das transformações de um ar infinito, o pneuma ápeiron.
Assim, o pensamento desses primeiros filósofos apresenta-se como interpretação da passagem da unidade primordial à multiplicidade das coisas no universo. O pensamento de Salvino está muito próximo deles. No mito, o homem nasceu da água.
Mas também é ar. Veremos por quê.
Esse mito poderia ser um poema Sobre a Natureza. As imagens cósmicas nos fazem ver o todo, o universo é uma imagem em expansão.
“A vida do índio era muito divertida e saudável. Ele adorava olhar o entardecer, as noites de lua e o amanhecer. Durante o dia, o sol iluminava seu caminho e aquecia seu corpo. Durante a noite, a lua e as estrelas iluminavam e faziam suas noites mais alegres e bonitas.”
É possível tornar-se sonhador do mundo, sonhador de devaneios cósmicos e sujeito do verbo contemplar, perceber, conhecer. Salvino mesmo é quem nos explica:
“(...) Quando eu amanheço... o dia surgindo... é bonito a gente sentir que o criador fez o mundo para que a gente pudesse usufruir dele... viver em harmonia com ele. Se eu estou em harmonia com a terra eu tô em harmonia comigo mesmo”.
Entrevistador- E quando o homem se desarmoniza?
É quando ele não observa o que foi feito pra ele ... que ele não reconhece aquilo que foi feito pra ele viver ... todos nós fazemos parte do universo ... então ... enquanto eu não tiver paz com a mata ... com os astros ... o céu... as estrelas ... a água ... enquanto eu não parar pra pensar... pra olhar... e pra sentir que eu faço parte daquilo ... eu não estou em harmonia com aquele mundo. Esse é o princípio pra eu viver aqui! (...) Dentro desse mundo mágico pataxó ... eu vou sempre viver aqui né? Vou viver subindo e descendo aqui nessa terra ... nas matas ... por aí ... eles estão nos protegendo também ....
E - Você me falou que queria fazer um livro de cosmologia ...
É eu sempre procurei trabalhar por aí ... a força do índio é grande ... como tem a lua ... o sol ... ela nos dá força e nos ensina também ... se você for fazer uma roça ... você tem que saber a época certa ... se você vai fazer ... por exemplo ... uma gamela ... você tem que tirar o pau na época certa pra não rachar ... aquilo ali é uma força ... que vem de cima ... o segredo da natureza. Ele é muito forte! Então ... eu tô juntando material ... tô desenhando ... tô fazendo esse trabalho aí ...né?
E- O livro deve refletir isso ... o homem integrado no cosmo. Você sente que o homem
pataxó está integrado no cosmo ... por isso você procura esse passado primordial ?
É você pode ver o mundo de baixo... e é um mundo diferente... você pode ver do alto... é outra coisa... de lá de cima dá pra você buscar uma energia purificada e essa energia vem ao seu encontro. Existem os guardiões de cada mundo... de cada povo.
Salvino nos fala do “mundo mágico pataxó... da energia purificada... da força...”, elementos da espiritualidade. Os devaneios cósmicos colocam-nos num mundo e não numa sociedade. Eles nos fazem escapar ao tempo, são puro estado, estado de alma.
Salvino opõe verticalidade à descida: “vou viver subindo e descendo aqui nessa terra...” e ainda... “mundo de baixo/mundo de cima”. Mas o contato com o mundo dos espíritos também se faz através dos sonhos.
“E também através do sonho... a gente viaja muito...no universo... porque por exemplo a minha vida... eu também dedico sempre ao sonho. É... eu... sempre busco... à noite quando eu vou dormir... eu sempre procuro... levar né? Meu... meu... minha alma ao... ao mundo né?
E- Embarcar no sonho... né?
É... é... através do sonho a gente recebe muita mensagem né?
Salvino aqui fala do sonho como possibilidade de estar em tempos e espaços em diferentes. Sua interpretação é de que, no mundo dos espíritos, que se manifestam através dos estados oníricos, não há fronteiras entre eles e os seres viventes.
O mito fala do povoamento da terra através de cada pingo de chuva que se transforma em índio.
Deles destacou-se O Primeiro e foi morar no além, o Itohã, alcançando um estatuto sagrado, o de protetor, o de pai. O além dos povos da família maxacali é povoado de espíritos, alguns são deuses.
Usando as formas canônicas de marcação do tempo, de divisão de esferas, a do vivido e a do relatado “... daquele dia em diante... os índios começaram sua caminhada aqui na terra, trabalhando, caçando, pescando, fazendo festas e assim surgiu a nação pataxó”.
Com o trabalho e com a festa, no mesmo plano de igualdade, nasce o ser pataxó. A organização desses dois universos, o do trabalho e o do lazer, indica presença da catequese. Os padres, com as ideias que propagavam de trabalho e de disciplina, usaram o mito para fins doutrinários, assim como Gil Vicente em Portugal, depois Anchieta no Brasil usaram o auto para o mesmo fim. Os padres ao propagarem o mito, em suas muitas versões, o fizeram incorporando nele valores cristãos.
O desfecho do mito traz a origem do povo pataxó: “Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras, indo embora para o rio e o mar.”
Txopai é, então, o criador e seus filhos, o povo pataxó, são seres da água. Como Tupã é deus das águas. Os homens e os deuses, os homens-deuses.
Povo da água
Para Bachelard, a imaginação não é apenas a capacidade de formar imagens na mente a partir da realidade, mas é a “faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade” (1989:18). Ultrapassar a realidade significa superar a condição humana, é tarefa para o super-homem nietzschiano, patamar que todos nós podemos alcançar, desde que guardemos a capacidade de nos maravilharmos, de nos permitirmos novas visões sobre a exterioridade.
Há dois tipos de imaginação, a formal e a material. São duas forças imaginantes que Bachelard investiga a partir de textos literários e de outras obras de arte.
A imaginação formal, fundada na visão, apenas “vê” a matéria enquanto forma, e é resultado do homem como espectador do mundo. A imaginação material, ao contrário, recupera o homem para o mundo, enquanto criador, demiurgo e não mais somente como espectador.
A matéria que ele procura dominar não é vista como  hostil e causa-dora de penas e fadigas. É, ao contrário, oportunidade de realização pessoal, de expansão do universo interior, de demonstração da força da vontade, incentivo à imaginação criadora, “centro de sonhos” (Pessanha 1985: xxi).
A imaginação material vincula-se aos quatro elementos que Empédocles de Agrigento apontava como as raízes formadoras do cosmo: ar, água, terra e fogo. Bachelard refere-se, da seguinte forma, ao pensamento desses primeiros filósofos dentro da tradição grega:
Se estas filosofias simples e poderosas conservam ainda fontes de convicção é porque, ao estudá-las, reencontramos forças imaginantes inteiramente materiais. Ocorre sempre assim: na ordem da filosofia não se persuade senão sugerindo sonhos fundamentais, senão restituindo aos pensamentos suas avenidas de sonhos (1989:5).
Estendemos essas observações a Salvino. E mais, afirmamos que reside aí o encanto do mito, falar ao coração das gentes. E é também este o seu caráter de duração, na verdade, o mito só pode ser compreendido em toda a sua extensão se for a voz do povo que o gerou.
Mais do que linguagem consciente, a linguagem dos mitos e dos sonhos se expressa sob a dependência dos quatro elementos primordiais.
Podemos interpretá-los materialmente, a partir de seu elemento dominante. Uma estratégia bachelardiana é buscar o elemento material que predomina. No nosso texto, é a água, ainda que a terra também esteja presente (na terra... nas pedras...), “Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras, indo embora para o rio e o mar”. Há no texto, predominância de palavras que evocam liquidez: água, chuva, rio e mar.
As imagens da água correspondem ao devir humano, “o ser humano tem o destino da água que corre”, diz Bachelard, inspirando-se em Heráclito. É elemento mais feminino do que o fogo e mais transitório, a cada dia morre-se um pouco, não há volta possível.
Água é também renascer e despertar, é matéria pura por excelência, há um sonho de purificação sugerido pela água e transmitido pelas imagens correntes na literatura através dos tempos. E esta sempre se nutre das fontes primevas, do pensamento dos primeiros povos que habitaram o universo. A literatura alimenta-se da ontologia arcaica, o mito em sua essência.
Muitos acreditam que todas as formas de amor recebem um componente do amor por uma mãe, e a natureza é uma projeção da mãe, uma mãe ampliada, eterna e projetada no infinito. Para alguns, o mar é um dos maiores e mais constantes símbolos maternos. A figura materna que nos alimenta com seu leite torna-se para nós uma imagem muito forte, inesquecível, produtora de inúmeras metáforas. Toda água é um leite, um alimento primevo constitutivo; toda água tem o sentido de nutrição.
A água é o elemento fundamental das misturas, ela tem aptidão para compor-se com outros elementos. Nos antigos livros de química, a água “tempera os outros elementos”, forma liga, e para o poeta, o verdadeiro tipo de composição é, “a composição da água com a terra”. A união dos dois dá a massa.
É função do mito dar conta de novas realidades: explicá-las... interpretá-las... incorporá-las. Na verdade, as transformações do mito são as da vida cotidiana.
Reescritura do mito
Salvino e eu estamos conversando sobre a rescritura do mito Txopai Itohã. Rescrever a história é o termo que ele usa repetidamente como para esclarecer melhor seu inter-locutor.
Na verdade, re-escrever significa tornar a fazer algo que já se fez.
“E esta história... eu tô tentando rescrever ela... né. Tentando rescrever ela... pra po-der... saber os fundamentos direitinho né? Tem um rapaz aqui... ele não gosta de contar não. Ele não gosta de contar não... eu tô pegando ele com jeito... pra poder pegar né? Então... tem um segredo aí né? Tem o segredo dessa história...”
Ele se refere a uma re-escritura, pois, através dos símbolos da oralidade, os mitos já estavam escritos ou inscritos num conjunto de interpretações de si, dos outros, do uni-verso.
Na sociedade tradicional, os “pataxó antigo”, repetiam os mitos que já tinham ouvido de seus pais e avós, oralmente, face a face. A “comunidade de ouvintes” das narrativas, das epopeias contadas boca a boca não tem mais espaço nas sociedades modernas. A narração, para ser compreendida, não se apoia mais na voz.
Para memorizar o mito transmitido oralmente, é preciso fórmulas e padrões típicos da voz: o metro, a rima, o ritmo, as repetições, os encadeamentos, as cadências, os paralelismos, as aliterações e as assonâncias. Esses recursos são típicos da poesia, o mito usa de uma linguagem poética para se expressar. São, em geral, complexos e longos, e memorizá-los é tarefa do especialista.
O mito, para ter significação, precisa que seus modelos sejam compartilhados entre os membros de um mesmo grupo. Com a repetição, ele é propagado, atingindo, como vimos com Campbell, estágios universais. Jung falará de arquétipos.
Hoje, Salvino, para contar o mito, escreve, usa o alfabeto, os símbolos gráficos para intermediar as relações humanas, para contar uma história que ele já ouviu de alguém Salvino nos fala que é preciso descobrir um segredo. “Então... tem um segredo aí né? Tem o segredo dessa história...”
Existe algo que o contador do mito não quer, não sabe, ou não pode expor claramente.
Salvino, como o escriba, deve tentar descobrir para que seu texto tenha textualidade, isto é, seja compreendido por aqueles que possam vir a lê-lo. É preciso, então, buscar o nexo.
Salvino é professor, além de ser o escritor dos mitos. Ele se preocupa com a mediação entre culturas. Quer ser entendido por todos. À diferença do narrador antigo, que se expressava de mil formas, com gestos, com ritmos, com expressões faciais, ele, como comunicador moderno, tem que tentar trazer para o leitor de hoje o sentido do texto.
É preciso traduzir para o leitor o tempo mítico, a simultaneidade de tempos que ocorre no mito, mas que não é usual nas narrativas modernas.
Para Salvino, a instância da oralidade é passado e é presente. Hoje, ele ouve ecos desse passado, recolhe fragmentos. Alguns velhos, conhecedores da tradição, não gostam de lembrar... não querem. As lembranças são ocasionais, fragmentárias.
No caso pataxó, a distância entre passado e presente é ainda maior, pois antigamente havia uma língua para dar suporte a esses mitos, hoje ela não é mais usada para conversação e todos falam português. Lévi-Strauss diz que o “mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do discurso”. A seguir, ele complementa, dizendo: “o mito está na linguagem e além dela” (1973:240). É esse mais além que encontramos aqui. O mito transformado chega aos dias atuais editado na forma de livro.
Sabemos com os Guarani que há textos cuja essência sagrada e religiosa não pode ser facilmente compartilhada. A cosmogênese Mbyá Guarani, o Ayvu Rapyta é construído numa linguagem que Clastres chamou de “nível metafísico do pensamento indígena” (1990: 15).
Nesses textos, o desafio à interpretação é constante. Para Salvino, descobrir o segredo do texto é encontrar o sentido de sua inteligibilidade para o leitor de hoje.
Cabe ao escritor mediar o passado, quando os ritmos corporais estavam afinados numa longa tradição, onde o exemplo vivo era mais convincente.
É preciso fazer a mediação entre esse passado e um presente de comunicação não direta, de intermediários como tinta e papel.
O momento atual não permite que uma linguagem seja enigmática. É preciso comunicar e o índio quer falar. Falar de si, de seu lugar no mundo De um lugar que sempre foi seu e que lhe foi negado nesta pirâmide social tão injusta que, por tanto tempo, relegou-os ao silêncio.
No panorama atual das relações sociais, elemento decisivo é a difusão de informações. Adauto, ex-cacique de Barra Velha, numa conversa em que ele reclamava dos direitos indígenas, sempre violados, cita textualmente a palavra - informação, como necessária para não mais serem passados para trás.
O trabalho de Salvino é duplo: de um lado, recuperar o mito perdido na memória; de outro, torná-lo compreensível para uma sociedade de letrados.
O mito como força organizadora é atemporal, refere-se ao passado, mas também ao presente e ao futuro. Ele se reconstrói e se atualiza permanentemente. Os pataxó deixaram de usar sua língua materna, mas seus mitos sobreviveram... em português do Brasil.
Com Salvino, o mito transformou-se em literatura. Ao escrever Txopai Itohã, ele mantém um estilo de composição bastante coloquial, que revela sua proximidade com os valores do mundo não-letrado a que ainda pertence. Aliás, a crítica literária aponta a coloquialidade como traço dominante na narrativa literária produzida hoje no Brasil.
O estilo de redação de Salvino está muito próximo das formas de composição oral como a repetição, a enumeração extensa, o uso de diminutivos etc. Não há nele o traço da impessoalidade que domina outros textos, sua fala é ainda muito próxima de nós, seu tom e (podemos bem dizer assim), seu ritmo ainda são os das histórias que ouvíamos quando criança.
Ao conversarmos, Salvino e eu falamos dos mitos fundadores, que os povos do mundo inteiro... pataxó, persa, chinês, japonês, todos ... vão recriando... vão recontando. O homem cria mitos permanentemente, da mesma forma como ele constrói a história.
“É ... é isso mesmo... É verdade! Pois é ... ( ... ) o mito da lua... como é que surgiu a lua..., né? Não tem ela escrita ainda no livro não. Tem história mas não tem o mito mesmo. A lua é uma índia velha né? É aquela história de mamãe... agora tem o mi-to...como que surgiu o Txopai Itohã...”
Salvino faz uma distinção entre mito e história, que é oportuna e discutida por muitos.
A emergência do que chamamos história, para Goody (1988), está ligada à introdução da escrita em sociedades de tradição oral, “não há história sem arquivos”. Ele estudou a influência da escrita nas sociedades humanas e as profundas alterações que foram surgindo no modo de agir e de pensar em comunidades não-letradas, que passaram a usar o alfabeto para intermediar a comunicação humana.
Goody trata as noções magia e mito de um lado e ciência e história do outro, como pertencentes ao domínio das diferenças entre o oral e o escrito.
No Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss vai falar do bricoleur, opondo o pensamento selvagem ao científico, mas alertando que ambos coexistem no homem, são duas faces de uma mesma moeda, o cientista trabalha com o conceito (significado) e o bricoleur com a imagem (significante). Carmem Junqueira considera que a arte, o mágico e o mitológico só fluem se o pensamento selvagem subsistir.
Na passagem da magia para a ciência, no abandono da intuição e da percepção, existe um distanciamento que a escrita ajuda a introduzir entre o homem e seus atos verbais. Na magia, uma invocação não pode ser vista fora de quem está falando, não se pode separar o homem de seu dizer.
Os putuxop
Qual é a origem da palavra pataxó que dá nome ao povo de que trata o mito?
Entre os maxacali (povo da mesma família lingüística dos pataxó), as entidades espirituais, os yãmiy relacionam-se com os animais, principalmente com os pássaros. Eles estão divididos em catorze grandes grupos de Yãmiyxop (grupos de espíritos) parentes e cada um possui um nome. Dessa lista, destacamos - putuxop - que são pássaros da família dos periquitos, dos papagaios e das araras. Os dados etnográficos nos mostram que, em Barra Velha,  aldeia-mãe dos pataxó, todos têm nomes de pássaros ou de árvores. Como nos explica José Baraiá:
“É... é um passarinho sabe? É um periquito.  Só que quando eles me botaram esse apelido... eu era... meninote... menino é um bicho que tudo que encontra ele come... então eu comia muita jaca... jaca tem aquele visgo né... aí eu comia... menino é danado pra andar brincando pelo chão... então ... eu ficava todo sujo...né...aí disse “esse cara parece um baraiá lá do mato”... o que come visgo da fruta... se gruda tudo e ... se suja... então botaram esse nome ... por causa que eu comia muita jaca.”
Os pataxó são um povo da água, nascem da  materialidade da água, mas sua metade espiritual está ligada ao elemento ar, pois os putuxop são pássaros, cantores por natureza.
Povo do ar
No belo livro O ar e os sonhos, Bachelard fala da imaginação do poeta do ar, como a mais forte das imaginações... “O poeta do fogo, o da água e o da terra não transmitem a mesma inspiração do que o poeta do ar” (op.cit, p.4). A imaginação aérea está mais além e projeta no espaço o ser inteiro.
Entre as imagens do ar, temos a mobilidade, a liberdade e a desmaterialização.
A mobilidade implica leveza. Para que alcancemos as alturas e nosso espírito se eleve até o alto das montanhas, temos de nos livrar do que há de pesado em nós, de nossos remorsos, desgostos, rancores. O mar, água feminina e maternal, nos libera.
Desse modo, fica mais fácil compreender a relação dos pataxó com sua montanha sagrada - O Monte Pascoal. Eliade constatou, analisando várias culturas antigas, que, para estas, o centro do mundo está localizado na Montanha Sagrada, onde céu e terra se encontram. Fica evidenciada, entre os pataxó, sua relação ab origine. O Monte Pascoal é um viveiro de pássaros, há espécimes só encontrados ali.
Os pataxó e os maxacali são povos da mobilidade espacial, deslocavam-se historicamente por um imenso território. Nunca se conformaram às Reservas Indígenas que o Estado brasileiro legou para eles. Suas fronteiras sempre foram outras, seu sentido de liberdade mais extenso.
Bachelard dirá: “O ar natural é o ar livre”. As imagens do ar são também imagens da desmaterialização... ou se evaporam ou se cristalizam, pois essa é uma realidade da matéria.
Lembrando dos maxacali, que permaneceram muito ligados à tradição, temos, ao lado de uma vida espiritual riquíssima, que conseguiram manter ao longo dos anos de contato intenso e sempre violento, uma parca materialidade. A imagem do pequeno fogão onde cozinham seus alimentos diz tudo. Quando viajam para vender seu elaboradíssimo artesanato em linha (bolsas, armadilhas para pesca), não carregam quase nada, a não ser a si mesmos.
O mito Txopai Itohã continua presente nos valores que expande, por isso a dimensão mítica permanece. Esses valores advêm dos elementos materiais que compõem o mito: água e ar. Eles permanecem no nosso inconsciente e o dinamizam.
São força e energia, reaparecem no sonho, na literatura e nas artes em geral. As imagens arquetípicas projetadas refletem nossos impulsos, desejos, comportamentos. Trazem-nos felicidade e sofrimento. Constituem uma herança. Fazem parte de um patrimônio que é nosso, de um povo herdeiro dos antigos brasis, povo brasileiro.

Referências
BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
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domingo, 3 de setembro de 2000

FUNDAÇÃO DA USP - 1934 - ARMANDO SALES OLIVEIRA

Após a derrota da Revolução de 1932, São Paulo sentiu a necessidade de formar uma nova elite capaz de contribuir para o aperfeiçoamento do governo e a melhoria do país. Com esse objetivo um grupo de empresários fundou a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), em 1933, e o interventor Armando Sales criou a Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Como disse Sergio Milliet, "de São Paulo não sairão mais guerras civis anáquicas", e sim "uma revolução intelectual e científica suscetível de mudar as concepções econômicas e sociais dos brasileiros". A busca de conhecimentos aplicáveis à vida do país vinha reforçar a crítica à cultura bacharelesca e à formação deficiente das escolas de direito.
A ELSP desejava formar elites administrativas para os novos tempos, marcados por uma atuação crescente do Estado, enquanto a USP pretendia preparar professores para as escolas secundárias e especialistas nas ciências básicas. A sociologia norte-americana constituiu o modelo da ELSP. Já o perfil da Faculdade de Filosofia da USP foi influenciado pelo mundo acadêmido francês.
Professores estrangeiros como Roger Bastide, Emílio Willems, Donald Pierson, Pierre Monbeig e Herbert Baldus, entre outros, difundiram nas duas instituições novos padrões de ensino e pesquisa, formando as novas gerações de cientistas sociais no Brasil. A ELSP, a Faculdade de Filosofia da USP e o jornal O Estado de S. Paulo formavam o que o historiador Carlos Guilherme Motta chamou de "um tripé de sólido enraizamento cultural e político".
O entrelaçamento entre cultura e política também se fez sentir na criação do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo em 1935, pelo prefeito Fábio Prado. Nesse órgão trabalharam Paulo Prado, Mário de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Rubens Borba de Moraes e Sergio Milliet.
Outra conseqüência do projeto político-cultural que se desdobrou em São Paulo após a Revolução de 1932 por iniciativa tanto de instituições governamentais como de empresas privadas foi o notável crescimento da indústria editorial